quinta-feira, 10 de abril de 2008

Carta de um professor do Comitê UnB Livre


Um passeio pela reitoria com a Exma. Sra Juíza de Direito Dra. Cristiane
Exma. Sra Juíza de Direito, posso te chamar de Sra. Cristiane? Desculpa-me a intimidade, mas não é desrespeito meu. Andando por aqui, na reitoria, ficamos todos de cargos e funções destituídos, mais próximos um dos outros, que me parece lógico tratar a todos pelo nome de batismo.

Agradeço a sua vinda até aqui esta noite. Mas serei breve. Por favor, me dá a sua mão para andarmos neste escuro. Deixe-me te levara para conhecer pelo tato, a aspereza e o frio das paredes. Deixe-me conduzi-la por esta rampa, mas cuidado para não cair lá embaixo nas barraquinhas apertadas e na rala maciez dos colchões, que não são de plumas. Seria uma queda terrível, talvez pior do que aquele outro rapaz, se a sra. caísse por sobre um ou dois dos jovens lá embaixo e que sonham cair do céu somente uma educação melhor, não uma juíza.
Eles sonham e fazem. Como estes sinais, estes cartazes indicando o caminho, para a senhora e para mim. Está vendo estas velas acesas? Por aqui, desvie destas barreiras protegendo as salas repletas de documentos, ande mais um pouco, venha.
Sinta o cheiro Sra. Cristiane...está sentindo? Sim, sim é cheiro de marmita e de bolachas, mas não é esse o cheiro a que me refiro. Refiro-me a este cheiro que é diferente dos olores dos gabinetes, de madeira, cola e plástico. Por favor, neste escuro fica mais fácil sentir o cheiro de algo novo, orgânico, vivo..um cheiro de raiz, de algo que lembra a minha, a sua infância...as nossas adolescências; um cheiro de respiração fresca, leve, quase uma brisa emanada de um mar que pulsa solidariedade e generosidade...
E este som, este murmúrio, não lhe parece uma prece Sra. Cristiane? Sim, parece uma prece , uma cantiga, um mantra de louvor a um deus antigo e justo que diziam estar perdido na história desta instituição e deste país. Mas ele está aqui, presente, pela força de uma fé destes jovens.
Olhe, por favor, ali ao lado daquelas bandeiras do Brasil. Destas sombras que deslizam dançarinas nas paredes de concreto, emerge um deus que perdemos em nossas infâncias e em nossas adolescências. Lembra-se dele? Este deus justo está em cada palavra destes meninos e meninas que vieram servir os melhores dias de suas vidas neste templo escuro do Saber. Em homenagem a este saber, entregam suas preciosas horas em oferenda à justa causa da preservação do bem comum.

Mas aqui Sra. Cristiane, aqui neste pináculo é que eu gostaria de mostrar o que eles já me mostraram. Espere um pouco, na escuridão é difícil mesmo enxergar. Olhe com mais calma e longamente, a sra. poderá ver o que eles estão fazendo. Está vendo lá, depois do lago, depois do palácio, no cimo daquela colina? Enxergue longe, por favor. Aquele clarão no horizonte. São lanternas que eles carregam para iluminar o caminho e chegar aqui. Eu sei, a sra. tem razão, parece o alvorecer. Veja como são muitos. Veja o alcance da ocupação destes estudantes, como se estende. Veja que eles todos caminham desajeitados, em um terreno muito acidentado, lodoso, pedregoso para chegar até aqui. Muitos não chegam, ficam pelo caminho acidentados e depauperados. Mas alguns milhares chegam e cá estão. Chegando aqui, veja a sra. ali nos andares de baixo como eles são ordeiros, politizados e desapaixonados pelos bens materiais. Não, eles não estão cansados. Senão, não ficariam varrendo, limpando a sujeira, arrumando as tralhinhas deles, lendo, debatendo e atendendo a todos com cortesia. Veja como a ocupação, que a sra. chama de invasão (tanto faz a retórica neste momento) é ordeira, pacífica e organizada. Veja sra. Cristiane como este espaço está tão bem feito para os estudantes, de como eles agora se sentem tão em casa e como cuidam como se fosse a cada deles.

Não permitindo a religação de água e de luz, argumentando que eles são os responsáveis por tal situação, é colocá-los fora de um espaço que também lhes pertence - talvez mais do que a todos, e que estão zelando como se fosse a casa deles. Mandando a polícia retira-los, é punir a quem cuida bem da própria casa. Muitos moram aqui perto, avizinhados da reitoria, em um agregado de minúsculos apartamentos chamado Casa dos Estudantes. Eles estão em casa, uma casa que lhes foi negada na penúria de suas esperanças por uma educação cidadã melhor. Penúria de esperanças que juntas formaram a maior riqueza deste século na UnB: a dedicação à causa pública, o amor à causa dos mais fracos, balizando o uso ético dos recursos gerados por cada juiz, cada professor, cada faxineiro, cada um de nós trabalhadores.

Já pensou Sra. Cristiane se estes estudantes ocuparem (ou invadirem) o Brasil? Não haverá polícia, escuridão ou falta de água que façam eles se descuidarem daquilo que é meu, seu, deles e das tantas gerações que ainda vão pisar neste solo.

Vanner Boere
(vannerboere@uol.com.br)

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